20 de março de 2024

As viagens espirituais de Maria Mercedes: Capítulo XII

O CANTO DOS ESCRAVOS

Vinte e sete de setembro, de mil novecentos e noventa e um.
Era manhã, quando eu acordei assustada, recém-chegada de uma complexa viagem espiritual, mas muito bonita a qual não sei como passar para o papel, mas tentarei descrevê-la com muito carinho.
Tomei café e cuidei do meu cãozinho, porém, estava sentindo uma imensa vontade de voltar a deitar.
Como tenho o costume de fazer minhas orações todas as manhãs, sentei então em minha cama, contudo, sentia-me estranha.
Quando comecei a orar, meus olhos foram aos poucos se fechando, até que acabei por deitar.
Quando dei por mim, estava em uma enorme fazenda de café e de cana de açúcar, a qual se perdia de vista.
Ali havia muitos escravos. Eu era a Dona e me chama Izabela.
Estava perto de um tronco, onde estava amarrado um negro, o qual era meu protegido. Assim, eu dizia,  mas, na verdade, eu protegia, gostava e respeitava a todos como seres humanos.
O Coronel, o Senhor, meu marido, não estava em casa.
Diante daquela crueldade, fiquei fora de mim e dei ordem para soltassem o negro.
O capataz, porém, não aceitava minhas ordens.
Aquele capataz é hoje, em minha atual encarnação, meu querido filho.
Então, naquele momento,sem ouvir-lhe ou dar-lhe importância, ordenei a dois escravos, os quais se chamavam Pedro e João, para que soltassem aquele negro e tomassem conta dele,cuidando também de suas feridas.
Nervosa de ver tanta maldade, pedi que soltassem também a todos e que arrancassem todos os troncos.
Em segida,voltei para a Casa Grande, para esperar o meu Senhor, que era meu marido.
Nesta minha vida atual eu ainda não o reconheci.
O rapaz que estava no tronco é hoje um médium, o qual trabalha espiritualmente em nossos trabalhos.
Quando o reconheci nesta vida atual, ele era um alcoolatra e passava por grandes dificuldades morais. Sua cura se deu não por mérito meu, mas, sim, pelo dele mesmo, pois acreditou em meu mentor e fez tudo o que lhe foi orientado a fazer.
Hoje, ele é um homem respeitado pelos familiares e pelos amigos.
No dia seguinte, logo pela manhã, quando meu marido soube dos acontecimentos, ficou muito bravo e desequilibrado. Pegou-me bruscamente pelos braços e jogou-me no paiol de palhas de milho.
Quando caiu a noite, fiquei na janela, olhando os negros que dançavam e cantavam.
A noite estava protegida sob a imensa luz do luar, que com seus raios em imensa magia de amor, clareava tudo.
O canto deles mexia comigo. Parecia estar no meu sangue.
Eu ficava tão encantada que esquecia de mim e do que estava para acontecer.
A música era assim:

"Jesus mandou-nos cantar 
E dançar para louvar sua presença
E trazer magia do amor
A luz do luar com seus raios
Nos transmite a paz
Pra que nós tenhamos força de amar
Vamos dançar e cantar 
Assim Jesus está pedindo
E que ouvir
A Virgem Santíssima, nossa mãe nos abençoa
Vamos cantar e dançar
É a magia do amor".

Com esta música na cabeça, fui adormecendo.
Durante a noite, não ouvi quando a porta se abriu com a chegada de minha filha, a qual se encontrava ausente dos acontecimentos.
Chorando, dizia-me:
- Minha mãe querida, por favor, aceite o pedido de perdão e desculpas de meu pai!
Esta filha era a Sinhazinha, querida por todos. Por onde passava, deixava laços de amizade, porém, somente se fazia de bondosa. Era pura maldade no coração, igual ao pai.
Por coincidência, hoje ela é minha filha novamente e é uma boa amiga. É também agora, pura de mente e tem muito amor, empregando-o em tudo que faz.
Eu amor e respeito muito meus filhos.
Naquela época ela não sabia o que estava me pedindo.
Sem crítica, aceitei as ordens do meu marido e então me conduziram para a Casa Grande.
Antes de lá chegar, deparei-me novamente com o capataz. Desta vez, estava tentando levar à força uma escurinha, para servir o Coronel.
Mais uma vez, tive forças para intervir, não deixando que a levasse.
Em seguida, retomei o caminho para a Casa Grande.
Lá chegando, tomei um banho com a ajuda das escravas. Depois, fui levada à sala de refeições, na qual um almoço que mais parecia um banquete me esperava, contudo, nada comi.
Meu marido estava muito elegante, em traje de festa. Ele almoçava saboreando os quitutes, dos quais mandou servir-me, pois, sabia que eu gostava.
Foi servidor também o licor que eu mais apreciava.
Em seguida, convidou-me para que saíssemos, como se nada tivesse acontecido.
Caminhamos até a beira do rio. Lá uma canoa nos aguardava e juntamente, aquele escravo que eu havia tirado do tronco.
Meu marido gentilmente me segurou nas mãos e então, todos entramos na canoa. Ele disse ao escravo:
- Toca!
Andamos e rodamos muito com aquela canoa, até que paramos debaixo de umas árvores. Lá estava o capataz nos esperando, o qual disse:
- Está tudo como vóis pediu.
Ali estava o cavalo preferido do Coronel. Então, ele saltou da canoa e pegando em seguida os remos, disse:
- Siga a tua sorte! Que as águas tomem conta de vocês!
- Foi o que você pediu!
A canoa ficou parada por alguns instantes, rodeada por jacarés, os quais tambémestavam ali parados, parecendo estarem de vigia.
Após algum tempo, foram desaparecendo no meio do mato.
Aos poucos, a canoa foi descendo o rio.
O rapaz, com muito carinho, porém também com muito medo, o qual não dava para esconder, disse-me com pavor:
- Sinhá Izabela, segura em minha perna com toda a tua força, porque logo na frente tem uma cachoeira, que é a maior que já vi!
E a canoa foi deslizando lentamente sobre as águas, o que era um mistério para nós, pois a correnteza do rio estava descendo.
Assim permaneceu até que chegamos no começo da dita cuja. Foi quando aconteceu o mais lindo, sem explicação.
É a obra do amor de Deus, pois perante Ele, todos os seres, sem exceção de cor, raça, ou religião são iguais. Isso é lindo e maravilhoso!
Fico até até gelada em narrar o que aconteceu: a canoa não bateu nas pedras! Ela foi deslizando lentamente ou carregada pelas Mãos Divinas entre as águas.
Quando vimos, estávamos embaixo da cachoeira. Era só água que caía!
A canoa continuou a deslizar, bem devagarinho e seguiu rio abaixo, o qual, a meus olhos parecia um mar, com suas águas verdes e serenas.
O já estava se escondendo, ou indicando algum lugar, pois nesta altura dos acontecimentos, a esperança de se conseguir parar em algum lugar era mínima.
Pela misericórdia de Deus, despontou-se mais adiante uma prainha.
Com os nossos pensamentos, pedíamos para que aquelas águas nos levassem até ela.
Para nosso espanto ou merecimento, lá chegamos.
Quando paramos, descemos ao encontro daquela areia branca e quente, a qual esquentava nossos corações, dando a esperança de uma vida melhor.
Depois de acomodados e descansados na areia, meu amigo disse-me:
- Vou procurá alguns frutos prá vóis mecê.
Não se fez demorar, logo voltou com os braços cheios de frutos, fazendo em seguinda uma fogueira, pois a lua já se fazia presente, a qual, com seus raios de magia amor e luz, vagarosamente tomava conta, embelezando toda a ilha.
Foi quando ele disse:
- Descanse Sinhá. Vou pegá alguma coisa prá  fazê um abrigo, qué dizê, uma cabana.
Naquele instante, uma voz disse-me:
- Vamos parar por aqui. Volte ao teu corpo.
Assim fiz.
Naquele dia inteiro, soou aos meus ouvidos o som da melodia dos escravos.
Como é bom sentir a força de Deus! Sentir a sua luz e sua misericórdia!
Graças a Deus! Salve Deus!

Maria Mercedes.